IRMANADA COM ESSE CORPO E SEU AQUÁTICO JAZIGO
Começar confessando.
Confessar que minha alma foi comprada. Que minha alma nunca foi minha. E que as noites me comem pelas beiradas desde que selei o contrato. Ter emprestado à lua o próprio sangue é deixar-se morrer toda noite, anêmica, desprovida de cor e veias. Deixar-se abrir e aguar. Como as águas d’Ele me dividindo ao meio. Tão cedo para falar d’Ele, o comprador da minha alma. Uma criança preocupada com os jogo e os colegas, alheia ao mundo dos adultos. Ele é quem é por ser alheio. Por estar de fora. Como um deus que houve uma prece. Como a ilusão de que todas as preces serão ouvidas e o amargor dos dias não vai passar de um retrogosto.
Queria dedicar a Ele que me comprou as palavras, que me despiu da realidade, que come o meu fígado todo dia mas me mantém viva. Queria dedicar a Ele, Dionísio, a morte que eu vivo todo dia. E as palavras de luta e de ordem que me mastigam a poesia. Ele, Fundador da Minha Solidão, que Ele me ofereça as mãos já que nunca pude usar as minhas.
Eu o odeio, Dionísio. Por ser a minha metade fundida ao nada. Muda. Por ter me presenteado com a graça de uma quase voz instável e tremida.
Por ter arrancado a minha beleza. E meus olhos. E minha partida. Por ter feito de mim um bastidor de feridas.
O DESEJO DE SER TUDO
Como se nascessem rosas dos meus pulsos. O sangue de Afrodite salvando Adônis tingindo a pétala-carne de vermelho. Como estigmas. O fogo da flecha, da lança, da lâmina de ouro (dourado, dourado como Ele) me atravessando o corpo, me tornando também ouro e chama. Ir para o sol, almejar o sol, não se contentar com o calor e com a luz. Derreter em pleno voo e ser d’Ele, o deus-sol, o dono da vida, a perfeição que não se pode ter quando não se é tudo. Eu planejo me libertar, conseguir, eu planejo o outro dia pleno mas sou apenas uma planta com raízes e pétalas frágeis. Dependentes de luz e de água. Uma flor que à noite fenece, que já morreu mas brilha porque a lua lhe traz conforto, apagamento, frio. A lua a alivia enquanto o sol a arrebata. Mas não se pode viver de noite. Eternamente. Não se pode viver desta escuridão que leva a nada além de sombras e de esperança do fim do caminho. De asas. De liberdade. De flutuar, o corpo em brasa interna, revestido de ouro, o corpo em vestes brancas e puras e armas de soldado. Eu quero ser livre. “Eu” quero que “eu” não exista mais. Quando partir daqui e voltar à pátria que me pertence, serão os braços d’Ele, Apolo Dourado em Vestes Brancas Cerimoniais, que hão de me receber. Eu vi o fim. (Eu O vi). Mas que qualquer um. Enxerguei na minha própria pele a extinção do que nos separa do sagrado vestido em divino armado em sacrificial. É preciso lutar, mas eu não creio mais nas batalhas. Não creio mais nessa noite que me arrebata quando deveriam cessar as vozes e as imagens, quando o sangue se transubstanciaria em vinho, em néctar, na vida da rosa. A tua rosa, Dionísio, o teu girassol, Apolo.
PALAVRA DA SALVAÇÃO
Mas me puxa o fio de Ariadne. Todo dia, a saída do labirinto se insinua como uma esperança que eu não queria ter. Seria mais fácil se não tivesse. Se não precisasse criar cartografias da salvação, todo dia ao acordar, todo dia desperta dos sonhos de sangue nos quais me banho como em um batismo. Todo dia de manhã parida. Não me basta mais nascer, apenas. Existir não é o suficiente, deixar este meu corpo à margem do sagrado apartado das respirações matinais, esmigalhado numa oração, numa prece, num vazio. Despetalado. Eu, despetalada. Eu, um caule. Eu, uma raiz. Na boca do Minotauro. Tremendo na pele os dentes que poderiam me dilacerar. Os dentes, a saliva, eu mastigada sem nunca ser de vez devorada.
Por favor, me deixe, sua lembrança me provoca frio na espinha e eu não quero lembrar que tenho um corpo. Que tenho um nome. Um instante de sorriso teve mais força que todas as minhas fantasias. Senti o universo correndo no meu sangue, o mesmo universo das suas veias. As galáxias nos seus olhos. É melhor sentir amor do que morrer. Mas qual a diferença se o amor não é outra coisa senão a morte travestida?