(Evangelhos) Piedade

Imagem: Liu Yuanshou

Meu pai disse “eu tô morrendo” e então caiu nos braços da minha mãe, antes de eu chegar e assistir seu último suspiro.
Pai, eu tô morrendo. Pai, você deixou a marca da morte em mim, mas não quando se foi, desde o dia em que eu nasci. Pai, se eu me matar você vai me ver? Vai me abraçar como nunca conseguimos sem desconforto e inadequação? Pai, você não é responsável pelo vazio no meu peito, mas é um de muitos vazios. É e sempre foi a morte que bate à minha porta e que se instalou na minha alma bem antes de eu nascer.
A morte.
O amor.
Você poderia fazer como Dédalo e me construir asas, assim eu poderia fugir daqui. Mas você jamais o faria porque eu não sou seu filho.
Então eu tive que fabricar meu próprio fio, como Ariadne, pra sair do labirinto que você construiu. Só que não me tornei a esposa de um deus.
Até hoje, espero Dionísio porque não pude ser Ícaro e voar para longe até cair no mar.
Todas as asas queimam, pai. Por isso você nunca teve coragem de ver o sol. Todas as asas queimam, até as que eu nunca tive.
Como é morrer além do desespero? Como é virar nada e finalmente ter paz? Talvez você não quisesse, pai. (Claro que você não queria). Mas a solidão e o pavor estão na nossa carne como a dor. A dor nunca é opcional.
Queria ser Ícaro, pai, e morrer ao encontro do sol – meu deus Apolo. E não viver como Ariadne à mercê das vontades de Dionísio. A história das mulheres é sempre uma história de espera então por que você me fez assim?
Amaldiçoou a minha carne. Por que fez de mim errante e perdida, frouxa, pacífica, sem o ímpeto violento de me sacrificar? Por que fez de mim uma carne fraca repleta de vermes invisíveis e ânsia pela terra? Por quê, pai? Por quê?

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