[RESENHA] "Battle Royale", Koushun Takami

Save rock ‘n’ roll

“In a world full of the word ‘Yes’ 
I’m here to scream
‘No’
Wherever I go
Trouble seems to follow
only plugged in to save rock and roll”
(Fall Out Boy, “Save rock and roll“) 

República da Grande Ásia Oriental. Em uma realidade paralela, este é o nome de um Japão hipotético dominado por um regime totalitário, e também o país que promove anualmente o experimento militar chamado o “Programa”. Uma turma do ensino fundamental é escolhida aleatoriamente para participar do referido experimento, cujo objetivo é simples: os estudantes devem se matar até sobrar apenas um. Uma coleira rastreadora e um forte esquema de segurança não permitem que os jovens sequer tentem escapar do seu cruel destino: tornarem-se assassinos (ou assassinados) de seus amigos.

As quase setecentas páginas desse romance de horror me fizeram companhia durante o que foi um mês árido para mim. Terminei-o abalada pela beleza que os artistas japoneses conseguem, como ninguém, imprimir ao pessimismo. Por mais que tenha me emocionado em quase todos os capítulos, posso dizer que “Battle Royale” foi uma história que me atingiu no estômago. Nunca antes um livro me provocou ânsia de vômito. A cada capítulo, uma batalha histérica – são todos crianças, afinal – por sobrevivência. Cada fragmento banal de lembrança passa por uma lupa e toma proporções que apenas uma situação de total desespero e luta pela vida pode provocar. Há os personagens íntegros, com motivações nobres e caráter exemplar. Há também os desprezíveis, assassinos em potencial, que por traumas de infância ou até sem motivo algum, decidem participar do jogo macabro. Há ainda os que estão no meio do caminho, como em toda história interessante. E cada um deles conseguiu me tocar de alguma forma.

Dentre os 42 estudantes participantes do Programa, muitos merecem comentários aprofundados. Porém, por se tratar de uma resenha (e não de uma monografia), resolvi destacar Takako Chigusa, minha personagem preferida. Levando em conta que o livro foi escrito na década de 1990 no Japão, país de notável misoginia, a campeã de atletismo da turma destoa das demais estudantes. A imagem de fragilidade no “padrão japonês” de todas as outras meninas da classe (com exceção de Mitsuko Soma e seu grupo de “delinquentes”) não passa nem perto de Takako. Seu visual é forte – ela é linda, mas despreza os modelos idealizados de graciosidade discreta e subserviente das mulheres japonesas, com suas inúmeras bijuterias e luzes no cabelo – e condiz com sua personalidade. Em um determinado momento, seu melhor amigo a compara a uma deusa da guerra da mitologia greco-romana. E ela é a heroína de uma das melhores (a melhor, na minha opinião) lutas da história. Seu oponente não poderia ser mais odioso, um filhinho-de-papai machista e mimado, que tenta estuprá-la antes de acabar com ela. E que a culpa por seu desejo de violentá-la e de matá-la, insinuando que ela o teria provocado apenas por ter se negado a fazer sexo com ele consensualmente. “Escute aqui,” diz Takako, “na sua situação atual você deveria estar se preocupando mais com sua vida que com esse seu pinto mixuruca”. Ele é mais alto e mais forte que ela e possui uma besta e um nunchaku. Takako, mesmo portando apenas um picador de gelo como arma, não se intimida e parte para o embate mais feroz do livro. (Curiosidade: “Battle Royale” teve uma adaptação cinematográfica no ano 2000, a qual Quentin Tarantino diz ser a história que ele sempre quis filmar. No filme, Takako Chigusa usa um conjunto esportivo amarelo que serviu de inspiração ao icônico macacão de Beatrix Kiddo.Tarantino ficou tão empolgado com o filme que convidou a atriz que interpreta Chigusa, Chiaki Kuriyama, para viver Gogo Yubari em “Kill Bill – Vol. I”)

Qual o objetivo do jogo, afinal? Em momento algum temos uma resposta “oficial” satisfatória para esta pergunta, porém, numa conversa particular o responsável pelo Programa daquele ano expressa sua opinião: “Nosso país precisa do Programa. […] Raciocine comigo: por que você acha que a mídia local transmite a imagem do vencedor? É claro que os telespectadores devem sentir pena dele ou dela, achando que o pobrezinho possivelmente nem queria participar do jogo, mas não teve escolha a não ser lutar contra os outros. Em outras palavras, todos acabam concluindo que não se deve confiar em ninguém, concorda? Isso deve eliminar qualquer esperança dos cidadãos se unirem e executarem um golpe de estado contra o governo”.

Li em uma resenha por aí que o enredo de “Battle Royale” foca nas lutas entre os estudantes, dando pouca atenção ao contexto político, como se isso fosse algo negativo. Acredito que o tal “contexto político” esteja embrenhado na arena de maneira tão íntima que seria leviano classificá-lo como segundo plano no enredo. E, mesmo que a política sequer fosse mencionada, apenas a arena, pura e decisiva, não seria o suficiente para a grandiosidade desta história? Quando seu único bem é sua vida e todo o resto ficou em um passado irrecuperável – suas relações, seus hobbies, suas paixões, seus sonhos, sua liberdade – a luta é tudo que você tem. A luta é todo o seu mundo, todo o seu ser. “Battle Royale” é, antes de qualquer coisa, uma história sobre luta. Por isso a canção que cito acima (“Save rock and roll”, Fall Out Boy) não parou de tocar na minha cabeça durante a leitura, principalmente na metade final do livro. O protagonista, Shuya Nanahara, é guitarrista e amante de rock (considerado “música vulgar” dos chamados imperialistas americanos e muitas vezes proibido na República da Grande Ásia Oriental). Com pinta de rockstar, Shuya faz as garotas caírem de amores. Mas, para ele, acima de tudo o rock representa liberdade. “Num mundo cheio da palavra ‘sim’, estou aqui para gritar ‘não!'”. Essa é a força que impele Shuya e seus companheiros, Noriko e Shogo, a seguirem no jogo com o objetivo real de não se submeterem a ele. Contudo, para que isso aconteça, eles terão que lutar. Uma luta sem fim.

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