Às vezes eu ouço minha voz em silêncio

 
“But what if I’m a mermaid
In these jeans of his with her name still on it?
Hey, but I don’t care
‘Cause sometimes
I said sometimes I hear my voice
And it’s been here
Silent all these years”
(Tori Amos)
Muitas vezes eu finjo. Muitas vezes não. Muitas vezes não sei (ou não penso a respeito). Sinto raiva. Muita raiva. Mas meu sangue nos olhos é nulo porque não desagua em palavras. As pessoas que mais choram são aquelas que não sabem o que sentem, eu acho. Sou uma dessas. Por isso, sempre que vinha a vontade de chorar eu ia para a beira do poço. Gostava de fingir que minhas lágrimas pingavam lá dentro e se misturavam à água tranquila e secreta que ele abrigava.
Disseram que o poço levava a outro planeta.
Eu duvidava. Na minha opinião, ia no máximo até o Japão. Não dividi esta opinião com ninguém, é claro, pois com certeza ririam de mim. Na época, eu era adolescente e vivia numa comunidade rural no interior. Nunca tinha ido ao Japão, muito menos visitado outro planeta. Eu sequer havia visto o mar. Meu noivo se gabava por já ter ido à praia com seus parentes ricos da cidade. Ele trouxera uma foto desfocada como prova. Mal dava para distinguir os traços do seu rosto, mas eu acreditei nele, sem questionar. Eu era uma menina que acreditava em tudo.
Mesmo tendo acabado de completar dezessete anos, sim, eu tinha um noivo. Era um cara decente como todos da comunidade, cinco anos mais velho que eu, e era meu primo. Nós tínhamos crescido juntos, brincado juntos, ido à escola juntos e passaríamos o resto das nossas vidas juntos. Essa perspectiva nunca havia me incomodado, mesmo que eu raramente pensasse a respeito dela, tampouco me empolgava.
Lembro bem do dia em que encontraram a menina no poço.
Foi num sábado. Eu estava sentada na escadinha da frente da minha casa lendo um livro do Carlos Heitor Cony que acabara de encontrar nas coisas antigas da minha mãe. O poço ficava praticamente no meu quintal. Meu pai e meu noivo, que tinham tirado a manhã de folga da lavoura para montar a nova mesa da nossa futura casa, ouviram um choro baixinho de menina. Eles logo pensaram na possibilidade de alguma das crianças que viviam brincando ali perto ter caído. Porém, se fosse o caso, as chances de ela estar viva eram praticamente nulas. E se realmente o poço levasse a outro planeta? – pensei, ao me aproximar e ver a movimentação dos dois em torno do poço. E se aquela fosse a voz de um extraterrestre?
Estava um pouco longe, mas vi uma mão agarrada na borda de pedra. Uma mão delicada e branca, com as juntas avermelhadas devido a força que imprimia a fim de se segurar ali. Será que ela havia escalado a parece do poço? Foi meu noivo, o mais forte dos dois, que puxou o braço da criatura. Depois de alguns segundos de esforço e, com a ajuda do meu pai, meu noivo conseguiu tirá-la dali. Era difícil enxergar os detalhes com nitidez, porque logo ela estava enrodilhada no colo do meu noivo, mas percebi que se tratava sim de uma moça mais ou menos da minha idade. Estava nua. E, se eu pudesse mesmo confiar nos meus olhos, tinhas cabelos azuis muito longos.
Importante lembrar que nós não tínhamos televisão na comunidade. A internet ainda estava sendo criada e, mesmo que já existisse, nós jamais gastaríamos nosso suado dinheiro para comprar computadores. Todas as nossas informações do mundo exterior vinham dos rádios e dos jornais que chegavam sempre com pelo menos uma semana de atraso. De certa forma, eu me sentia privilegiada. Minha mãe era professora da escola primária e possuía muitos livros. E eu provavelmente seguiria seus passos e lecionaria na escolinha próxima ao nosso vilarejo. Entretanto, mesmo que já tivesse lido um pouco de cada assunto (pelo menos, era o que eu pensava), para mim, cabelo azul era essencialmente coisa de outro planeta.
Eu agora tinha certeza.
O poço dava em outro planeta.
– Ela não está machucada – ouvi meu pai dizer.
– De qualquer maneira, vou chamar o doutor – disse meu noivo, levando a moça para dentro da casa da minha família.
Segui os dois com os olhos, atônita. Meu noivo me chamou.
– Ponha um vestido seu nela – disse ele.
Segui-os para dentro da casa, largando o livro num dos degraus.
Puseram a moça na minha cama e saíram para chamar o médico da comunidade.
Ela tinha o meu tamanho, meus vestidos serviriam com perfeição. Estava completamente nua, mas seus longuíssimos cabelos cobriam os seios pequenos. Não pude deixar de notar que seus pelos pubianos também eram azuis. Quando percebi que ela me encarava, desviei o olhar, envergonhada. Fui até meu guarda-roupa e peguei um vestido simples de algodão, de cor creme com pequenas flores azuis. Ofereci-o a ela.
Ela continuou me olhando. Mas não fez menção de pegar o vestido.
– Pode usar – encorajei-a com um sorrisinho.
Nada.
– Eu ouvi você.
Mesmo tendo escutado as palavras claramente, duvidei que ela tivesse falado comigo.
– O quê?
– Você estava chorando outro dia. Eu tinha acabado de chegar.
Reparei que seus olhos tinham exatamente a mesma cor que os cabelos e que seu rosto possuía uma beleza sobrenatural. Não saberia dizer por que, mas aquela criatura nua na minha cama estava me incomodando demais. Sentei-me na beira do colchão e tentei puxá-la de leve pelo braço, de forma a facilitar o trabalho de vestir nela a roupa. Tentei realizar todos esses gestos sem manter contado visual com ela.
Ao vê-la vestida, senti-me automaticamente mais à vontade.
– Por que você estava chorando? – perguntou.
Não respondi. Não sabia o que dizer. Ou melhor, comodizer. Ela me perscrutou durante muito tempo e parecia que investigava cada traço do meu rosto, aguardando ansiosamente a minha resposta.
– Então você veio de outro planeta e me escutou chorando…
– Outro planeta? – ela sorriu um sorriso perfeito. A impressão que eu tive foi que cada um de seus dentes era uma luzinha dessas de pisca-pisca de Natal. – Se você quiser chamar assim…
Seu rosto me deixava confusa, quase tanto quanto sua própria existência. Seu corpo era bem parecido com o meu, totalmente formado e feminino, apesar de não muito voluptuoso. Já as feições eram quase infantis, os ângulos muito arredondados, a boca rechonchuda, os cílios (também azuis) finos e compridos. Em contrapartida, seu olhar era maduro. Com se a expressão incrustada neles fora recortada da cara de uma mulher velha e enxertada ali. Olhei meu próprio rosto no espelho de pé ao lado da cama: eu tinha olhos de menina boba, de criança chorona.
– De onde você vem, então? – perguntei.
– Do mar.
– Do mar? Mas o poço… O poço não tem nada a ver com água salgada…
– Do mar para o rio, do rio para o lençol freático, do lençol freático para o seu poço. Se há água, eu consigo chegar. Basta um pouco de força de vontade. Ou, como vocês chamam, “magia”.
Ela percebeu que eu não via sentido algum naquela conversa.
– Sou uma sereia – esclareceu.
Certifiquei-me de que ela tinha pernas. Ela reparou.
– Não temos rabo de peixe. Não precisamos disso para nadar, para viver na água. Somos criaturas mágicas. Você nunca leu sobre nós nos seus livros? – ela olhou minha penteadeira, sobre a qual havia mais livros que perfumes e maquiagem. – Nossa função é encantar os homens com nosso canto e, desse jeito, atraí-los à morte.
Logicamente eu conhecia aquela história, vinha da mitologia grega.
– Vocês ainda fazem isso?
– Sempre. Nunca paramos.
Pela primeira vez, captei algum sentimento na voz dela. Tratava-se de um sofrimento profundo. Foi então que ouvi os passos que vinham da porta da rua.
– Tranca a porta! – ela gritou.
Não consegui reagir.
– Anda! – seu tom era desesperado. Obedeci sem questionar.
Consegui trancar a porta do meu quarto antes que meu pai, meu noivo e o doutor pudessem entrar. Não demorou muito a começarem a bater e a me chamar.
– Eles não podem me examinar! Não podem descobrir que eu não sou humana, não podem me prender… – ela sussurrou enquanto se levantava. Agarrou minha mão e me puxou de volta para a cama, fazendo-me sentar e se atirando ao meu lado.
Sua mão era quente. Isso me assustou.
– Vamos embora – disse a sereia.
– Embora pra onde? Pro mar?
– Não! De jeito nenhum.
– Mas não é de lá que você vem?
– Desde pequena, fui instruída que a minha única função era seduzir e, por consequência, matar. É para isso que eu canto. Eu sou escrava da minha voz da mesma forma que você é escrava do seu silêncio.
Escrava do meu silêncio. Enquanto ela era obrigada a levar os homens à morte através de suas canções, eu acabaria desaparecendo se continuasse me guardando no silêncio. Eu seria atraída ao mar.
Ela segurou minha mão novamente. Apertou-a com força. Senti as lágrimas brotarem dos meus olhos e, ligeiramente, tomarem minhas faces inteiras. Logo eu estava soluçando. Ela também chorava, só que, ao contrário de mim, seu gesto era plácido, quieto, tranquilo. Parei de escutar as batidas na porta. Não ouvia mais gritarem meu nome. Ela não precisava cantar, como fazia com os marinheiros e pescadores, para me seduzir. Seu silêncio encobriu os sons que me calavam. Acariciei seus longos cabelos com a mão que não estava na dela. Eles tinham a textura dos sonhos. Ela tocou meus lábios com a ponta dos dedos, puxando de leve o inferior com o seu polegar. E, dentro da minha boca, ela sussurrou:
– Por mais que não pensemos na liberdade, ela é um desejo que sempre morou na nossa alma. Um ímpeto mais forte que a própria alma. Um ímpeto do tamanho do nosso corpo. E, por mais que as pessoas pensem o contrário, eu te garanto: o corpo é maior que a alma.
Quando abri os olhos, estávamos ainda de mãos dadas, paradas em frente ao poço.
– Vamos? – perguntou a sereia.
– Pra onde? Pro mar? – questionei, alarmada.
– Não. Para outro planeta.
Pulamos.
 

 
 
 
Imagem: Arte re rua (Jardim Botânico, Rio de Janeiro).